1001 Eventos

Sofia B. G.
4 min readFeb 14, 2021

Em cada confinamento existe aquele momento dos 1001 Eventos. Numa tentativa desenfreada corremos a inscrever-nos numa multiplicidade de eventos. Ao pequeno-almoço, 2030 Ecosystem Meeting, ao lanche, O Futuro de Portugal, e ao jantar, Cafés Filosóficos. Do almoço; não me lembro. Devia estar entretida com a tarefa inacabável a que chamo RaiosPartamATecnologia ou, para leigos, dar resposta a cada maldita notificação.

Unidos no combate à adaptação afundamo-nos sem percepção. Recorrendo ao viés da moda, Fear of missing out (FOMO), somos os braços que mantêm as empresas à tona. Algumas, quero eu dizer. Em contraste, às outras prendemos âncoras, tantas que provavelmente nunca se conseguirão libertar.

Foi com a notícia do fecho da Livraria Campos Trindade que se reacendeu este teclado para escrever sobre… bem, sobre escrever. Nesta tentativa perdida de fazer ler, quem se esqueceu do poder de uma flor.

Livraria Campos Trindade

Encham-me a montra com flores
Todas as grandes histórias têm um fim.
Chegou agora a nossa vez.
A vossa livraria da rua do Alecrim nº 44 vai encerrar este mês (…) — Fonte: Livraria Campos Trindade.

Sem vos querer enganar, tenho a dizer que esta livraria abrirá novamente; onde a renda não seja insuportável, quero eu dizer. No entanto, prendo-me com a preocupação por todas as outras. Portugal falha ao tentar rematar. Numa época em que poderíamos assistir a um aumento do número de leitores declaramos: “Livros não são bens-essenciais”.

(…)

Permitam-me discordar. Apesar desta moda recorrente de menosprezar a nossa existência enquanto seres pensantes, os livros tornam-nos humanos. Seres capazes de ter percepção do seu lugar no mundo e estabelecer empatia com o outro.

Já em 1953, Ray Bradbury publicava a sua mais famosa distopia, Fahrenheit 451. Livro no qual podemos ler a realidade actual. O futuro esplendoroso que irá emergir. A sociedade por que tanto aguardamos. Renascida e verde. No Admirável Mundo Novo eclodimos. Todos iguais. Formatados.

Não é, no entanto, apenas Ray Bradbury ou Aldous Huxley que previam uma desconexão com a Humanidade através da queima dos livros ou a sua inexistência. A maioria de nós concorda. Segundo um estudo do Gerador e da QMetrics, a literatura é a dimensão mais facilmente associada à cultura. Agravando a isso acreditamos que uma sociedade evoluída deve investir mais na cultura. Conseguem ver o problema? Sonhamos com uma sociedade evoluída, mas dizemos todos os dias que amanhã teremos mais tempo para ela.

Lerei, um dia.

Não me espanta, em Portugal os livros são desprezados, espezinhados. Não lemos, não gostamos de ler. Na melhor das hipóteses criamos mesas de cabeceira, Tsundoku, aconchegando o nosso Ego Literato [1, 2]. Em 2011 51% dos Portugueses não tinha lido nenhum livro nos últimos 12 meses. Em 2020 há demasiados eventos, tarefas, Queima-Tempo com que nos ocupar. Acabe-se com tudo o que nos faça sentir ou pensar.

A mais antiga livraria do mundo. Bertrand do chiado

Assim, o ano passado apercebi-me que não sabia estar. Ser. Existir. Dentro de mim ateou-se um chama à qual continuava a dar lenha. Inconsciente, sem parar, atingiu dimensões desmedidas. Essa necessidade permanente de dar resposta. Fazer mais. Atender aquela chamada, responder ao e-mail, limpar a casa, publicar um artigo, participar num festival, debater ideias, ir correr, cozinhar o jantar. Ter valor. Posso parar agora? Não, porque parar exige estar comigo; e eu, não existo.

Quando foi a última vez que fechei os olhos e trouxe a minha consciência para a mão? O meu pé? Para mim. Para lá dos rótulos, dísticos ou características. É nessa pausa que visiono o potencial literário. Para ler, temos de nos dar aos livros. Permitir que nos toquem nas feridas que quisemos fingir não ter. Caso contrário…

Assusta-me o caminho que percorremos. Sem oportunidade de escapar, ganhamos peso mental. Obesos, sedentários, perdemos a capacidade de questionar. Vivemos em 1984: Os meus problemas são aqueles que alguém quer que eu tenha. Os teus problemas, idem. Não nos compreendemos. Não nos ouvimos. Cansados. Desistimos.

Teremos perdido a noção da propriedade findável do tempo? Do nosso tempo?

As (im)possibilidades que se avizinham aterrorizam. Fecha os olhos. Apercebe-te de ti.

Pois, hoje ainda quero ser amanhã, “simples, verdadeira e alegre”. Tal como a livraria Campos Trindade, uma flor e um livro bastar-me-ão.

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Sofia B. G.

Just one more person who likes to write and, hopefully, touch others telepathically. Help me to grow my powers. Your opinion counts a thousand volts ❤