Rés-do-chão D

Sofia B. G.
4 min readMar 10, 2021

O texto abaixo é baseado em factos reais. No entanto, algumas informações foram alteradas por motivos de segurança.

Fronteiras intranspassáveis. Fonte: Capricho

Em 2021, nos arredores de Alvalade, em Lisboa mora uma criança. Mais precisamente, no rés-do-chão D mora uma criança de nome desconhecido. Chamar-lhe-ei Matilde, não para lhe roubar identidade mas para que possa ser vista como qualquer criança merece ser.

O primeiro encontro foi fugaz. Ia simplesmente à caixa de correio que se encontra ao lado da sua porta. A Matilde ia sair, trazia um cão preso por trela. Oiço a mãe, num tom agressivo:

Anda masé!

Quando a Matilde responde, percebo que na sua voz existe uma tremura que revela a incompreensão sentida. A tentativa de ser vista. Cada um de nós poderá partilhar desta sensação em algum momento na adolescência — a não-pertença.

Está aqui uma senhora, mãe…

No entanto, aos meus olhos está uma criança. Não uma adolescente. Olho-a. Quero sorrir. Será que lerá nos meus olhos o seu reflexo? É a sua existência reconhecida dentro das paredes onde vive? Servirão estas de proteção ou de prisão?

Chamo o elevador. O assunto evapora-se lentamente. O tempo decorre até ao 2º (des)encontro.

(…)

Acabo de chegar a casa, estou no rés-do-chão quando me apercebo da gritaria na porta D.

Se ela bater com as costas, eu deixo-a lá, que morra (*choro*).
Ontem quando acordei para ir a casa de banho, lá estava ela no instagram! É impossível, não aguento mais!
Não a quero mais na minha vida! Eu fiz tudo por ela!!

Entretanto apercebi-me que estava em conversa com a mãe. Ou seja, a avó da Matilde.

Pareceu-me, mas não posso confirmar, que a avó tentava acalmar a mãe. No entanto, enquanto criança, a Matilde vai assimilando.

Ela não devia existir.

Passado uns minutos oiço um som de estalo.

Mas estás a comer pão? Fiz-te o jantar para quê?

Não aguento mais; ligo para a protecção de Crianças em Perigo.

Caso presencies situações de abuso psicológico, emocional, ou físico de menores liga: 96 123 1111.

A Senhora que me atendeu, muito simpática, agradeceu-me o contacto. Era realmente uma situação gravíssima. Informou-me que iria investigar, mas caso a situação continuasse deveria ligar para a PSP. Só nesse momento me apercebi, estava a tremer. Quantas crianças passam por isto? Quantas crianças no mundo existem e não são desejadas/protegidas?

Num mundo como o de agora, em que estamos encarcerados dentro de quatro paredes esta situações amplificam-se. A Matilde, como muitas outras crianças, não tem grande saída. Há fronteiras, muros que se estendem por muitos anos. Os traumas prevalecem durante múltiplos anos; isto se forem tratados (e pagos psicoterapeutas). Os abusos cada vez mais difíceis de detectar. Não há escapatória.

Ainda me impressiona a incapacidade parental. Numa tentativa de preencherem vazios insuportáveis, mostrarem etapas alcançadas — ter filhos após casar, ficarem bem vistos, terem sexo casual desprotegido, as crianças sofrem. Albergam em si, os traumas que não lhes pertencem. Tornam-se adultos disformes para perpetuar ciclos sem fim.

Só em 2018, 1504 crimes associados a crianças que sofreram agressão física ou psicológica. No ano anterior, 1286 casos. Em apenas dois anos (2017 e 2018) já houve mais de 2700 denúncias. Mais de duas mil crianças que terão traumas durante toda a sua infância e adolescência. Sem contarmos com todas as outras que sofrerão em silêncio. Sendo que, mais de 50% das vezes a situação ocorre na residência comum. Aquilo a que chamamos casa, e onde, no último ano tivemos de estar fechados para melhoria da saúde pública.

Em 2020 imagino os número a aumentar. Quem é que irá dar proteger estas crianças?

Em relação à Matilde, tive de ligar à PSP. Às 8 da noite, os gritos ainda não tinham parado. O senhor que me atendeu enganou-se no relato que lhe fiz dizendo violência sexual. Senti que vivia num mundo à parte, onde a violência psicológica é subjugada. Não queria mandar pessoas à porta de casa da Matilde se eu não conseguisse obter mais informações sobre a menina. Idade, nome, estado civil da mãe. Não tinha essas informações, mas lá lhe expliquei o óbvio — abuso psicológico é crime. Três horas mais tarde, o senhor liga-me.

Não havia abuso nenhum. Até perguntaram à menina. Ela parecia ter alguma deficiência…

Vivemos num mundo em que basta dizer que está tudo bem. A criança com os olhos da mãe pregados nela certamente não a iria denunciar. Ainda levaria outro estalo com a mão ou com as palavras afiadas.

A deficiência da Matilde é simples: não é dela, é da mãe.
Deficiência de amor e proteção.

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Sofia B. G.

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